Para o Mestre com carinho
Marisa Lajolo – Titular da cadeira nº 26
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Na obra do Professor Antonio Candido, há três textos aos quais retorno com frequência. Enumero-os aqui na sequência de sua produção / publicação :
A literatura e a formação do homem [1]– ensaio que se originou de palestra na 24a. Reunião Anual (1972) da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) . Outro é o livro Na sala de aula : Caderno de análise literária [2]. Sua primeira edição é de 1985 e seu título já sugere espaço e situação para a qual os textos nele reunidos foram concebidos . O terceiro é o artigo que inspira o evento que dá nome à Ocupação Antonio Candido: o ensaio O direito à literatura : Palestra na Comissão de Justiça e Paz (1988), foi incluído no ano seguinte em Direitos Humanos e … [3] , livro organizado por Antonio Carlos Fester . Posteriormente, o texto frequentou outras publicações e hoje se encontra na coletânea Vários escritos [4]
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Estes três textos têm sua origem ou seu entorno em situações de oralidade. A literatura e a formação do homem e O direito à literatura resultam de palestras . E Na sala de aula resulta do preparo de suas aulas, como informa o prefácio:
As versões iniciais destas e muitas outras análises foram redigidas há bastante tempo . Na maioria, entre 1958 e 1960, quando eu lecionava Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia de Assis, SP . À medida que as utilizava nas aulas (…) elas iam sendo acrescidas e modificadas ; ( p. 06)
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Penso – com a aval do professor [5] – que a lapidar formulação de 1988, O direito à literatura [6] retoma, desenvolve e radicaliza a reflexão proposta na palestra da década anterior ( A literatura e a formação do homem, 1972). Já a partir de seu título, a palestra de 1972 apresenta a literatura como fundamental para a formação do ser humano , apontando “ a função humanizadora da literatura, isto é, (…) a capacidade que ela tem de confirmar a humanidade do homem.”
Ao longo de seu desenvolvimento, o texto articula o caráter formador da literatura com a ideia de que seres humanos têm “necessidade universal de ficção e de fantasia” (…) e que “a literatura” (…) “ é uma das modalidades que funcionam como resposta a esta necessidade universal “ [7].
Esta função formadora da literatura, formulada a partir de sua pertença ao reino da ficção, da fantasia e da imaginação , desdobra-se . Logo a seguir, o professor sublinha o estabelecimento de laços – na literatura, isto é, nos textos literários – “entre imaginação literária e realidade concreta do mundo”
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É a partir desta síntese entre ( de um lado) fantasia & imaginação e ( de outro) realidade concreta do mundo, que penso ser possível discutir o aprofundamento que o texto de 1988imprime ao de 1972:
( …) se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia , a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal , que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito [8] (p. 242 )
Vale a pena observar que, para o professor, a expressão sentido amplo que envelope o conceito de literatura na citação acima expande e – expandindo- democratiza de forma exponencial o tipo de texto recoberto pela expressão literatura :
Durante a vigília a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus, até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance (p. 174-175 )
É com base nesta reflexão ( que confere identidade literária também a produtos da indústria cultural ) que o texto se encerra reafirmando que
Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável ( p.191)
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Os dois textos de que venho tratando até aqui, em paralelo com sua cerrada argumentação, mencionam alguns escritores: Dostoievsky, Tomás Antonio Gonzaga, Victor Hugo entre outros.
Apesar destas esparsas menções a autores consagrados, A literatura e a formação do homem e O direito à literatura detêm-se, no que talvez se possa chamar de aportes teóricos para uma concepção de literatura como uma das práticas culturais de profundas implicações sociais. Aportes teóricos porque ambos os textos apresentam uma tese: a leitura literária é formadora, reformadora ( e será que talvez às vezes também deformadora ? ) de valores, comportamentos, crenças , sentimentos e normas e, como tal, direito humano.
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Este viés teórico, no entanto, abandona o protagonismo no livro de 1985- Na sala de aula. Nele, o professor arregaça as mangas e encena ( e encenando, ensina) maneiras de, no exercício profissional da docência ( e também em textos críticos ) , democratizar o acesso à literatura .
No prefácio, o livro é apresentado como “instrumento de trabalho” (p.06). É constituído pela analise de seis poemas [9], apresentados na sequência de estilos que, por representarem as épocas em que a história literária brasileira geralmente distribui seu objeto, comparecem a cursos da disciplina “literatura brasileira” e a livros didáticos.
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Desrespeitando a cronologia do livro, vou abri-lo no seu quarto capítulo, que trata do poema Fantástica de Alberto de Oliveira .
Adoro este poema ! ( E me desculpo pelo subjetivismo da escolha pela passagem de Crítica e memória em que o professor resgata o direito do crítico ao gosto pessoal e à preferência por um ou por outro texto [10] ) .
É a partir da análise que o professor faz dele que vou comentar algumas passagens que ilustram procedimentos discursivos pelos quais – penso- temos uma lição de como democratizar a leitura e a discussão da literatura. Isto é – como torná-las acessíveis . Pois só democratizando a leitura e a discussão da literatura me parece ser possível fomentar a demanda pela literatura e a luta pelo pleno acesso a ela como um direito humano: direito a ser reivindicado, e não concedido por benevolência .
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Nas análises do professor, o leitor está sempre explicitamente presente.
Na discussão do poema Fantástica, que recebe o sugestivo nome de No coração do silêncio, creio que os leitores ficam com a sensação de que era exatamente a cada um deles que o professor se dirigia. E que era exatamente a ela/ele que o professor atribuía ( e aplaudia) uma determinada reação ao texto .
Assim: definindo o poema de Alberto de Oliveira como uma descrição pura e contrapondo este traço à presença de uma primeira pessoa nos dois poemas que antecederam o de Alberto de Oliveira ( de Tomás Antonio Gonzaga e de Álvares de Azevedo ) , o professor se faz intérprete solidário de eventuais reações do seu leitor :
Situado de fora, o leitor vê um quadro feito para existir por si mesmo, autônomo e sem vínculos (p.55 ),
Tornando, assim, o leitor seu interlocutor, o professor o traz para dentro do seu texto. Os procedimento textuais responsáveis por tais efeitos de sentido repetem-se em outras passagens da análise de Fantástica, bem como na análise de outros poemas :
Habituado às neblinas da poesia contemporânea, o leitor fica meio perplexo com este discurso despojado e sem mistério, que parece entregar tudo à primeira vista; mas nota que ele é fruto de uma contensão elaborada … ( p. 22, na análise da Lira de Tomás Antonio Gonzada .Todos os itálicos das cirtações são meus )
Com efeito, pensa o leitor, numa planície onde bebem sombras , os pianos podem ser soltos ( p. 85, na análise de O pastor pianista de Murilo Mendes. )
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Na sequência da nomeação do leitor como um outsider ( situado de fora) do poema de Alberto de Oliveira, reforçando o envolvimento do leitor com o que lê, o professor põe em cena uma primeira pessoa do plural :
Aqui estamos no reinado dos objetos, não dos sujeitos (p.55)
Este nós, generosamente assumido ao longo de quase todos os textos ( e também em textos de outros livros ) propicia identificação entre quem escreve ( Antonio Candido) e cada leitor que está lendo seu ensaio.
Na análise de Caramuru e de O Rondó dos Cavalinhos a mesma primeira pessoa do plural compartilha interpretações:
De todos os poetas mineiros do século XVIII Durão é o que provavelmente conhecemos melhor como homem ( p. 08)
Observando a pontuação, percebemos o seguinte ( Análise de O Rondó dos Cavalinho p. 70)
Este compartilhamento com seus leitores de pontos de vista apresentados ( no limite, a autoria da análise ?) talvez intensifique o envolvimento e, consequentemente, a adesão de seus leitores-alunos à leitura proposta pela análise, já que ela não é oferecida por uma terceira pessoa – eventualmente distante e superior- mas foi construída pela colaboração do autor com seu leitor.
Ou seja; o leitor sente-se capacitado para ler e discutir textos literários. Como se diria hoje: opera-se aqui o empoderamento do leitor .
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A este generoso compartilhamento de pontos de vista soma-se um sucessivo desbastamento de interpretações / afirmações categóricas. Ao invés de leituras e interpretações definitivas, apresentadas como indiscutíveis e verdadeiras, leituras e interpretações propostas pelo professor pautam-se por tom predominantemente sugestivo, hipotético .
Num tempo como o que vivemos hoje por estas bandas, tão sufocado por certezas pétreas, vale a pena observar o respeito com que o professor trata não só seus leitores /alunos mas o próprio texto que está analisando.
Assumindo, na leitura que apresenta dos textos com que trabalha, que sua leitura não é nem indiscutível, nem definitiva, ao apresentar suas formulações como hipóteses, Antonio Candido aproxima-se de concepções bastante contemporâneas que postulam a abertura da obra literária. Analisando o poema de Alberto de Oliveira, por exemplo, o professor limita-se a sinalizar uma possível – apenas possível ! – interpretação para uma bela passagem:
Rio parado é uma contradição em termos, pois a natureza dos rios é fluir. No entanto, existe um nestas condições: o Aqueronte, que, na mitologia grega é ao mesmo tempo barreira defensiva e caminho de ingresso ao reino dos mortos. Isto faz crer que o rio “imoto “ cercando o palácio, como fosso protetor, indique a entrada de um lugar desse tipo ( p. 57 )
O mesmo procedimento encontra-se em praticamente todas as outras análises do livro, como por exemplo a dedicada ao poema Meu sonho de Álvares de Azevedo:
O sonho deste poema parece mais um pesadelo … ( p;. 48, Meu sonho )
Mais adiante, a propósito de O pastor pianista o adverbio talvez e o futuro do pretérito relativizam qualquer traço impositivo da leitura apresentada:
Entre os pianos e os homens talvez haja uma correlação mais funda, que unificaria de maneira dialética a parte impertinente e a pertinente ( p.95 )
Outros títulos da obra de professor valem-se de procedimento idêntico. Em texto de 1943, a propósito de Stendhal, afirmações categóricas são substituídas por um enunciado que manifesta em plenitude o procedimento aqui apontado
: (…) talvez se possa dizer que é um psicólogo mais completo que ambos ( Benjamin Constant & Balzac, ml ) , estando a chave de seus livros … [11]. ( p. 60 )
Também um dos documentos expostos na Ocupação Antonio Candido materializa, no manuscrito à margem, a correção pretendida para o texto impresso, o que ilustra a extensão deste procedimento na produção intelectual do professor, inclusive em áreas que não se referem a literatura .
Trata-se de separata do artigo Possíveis raízes indígenas de uma dança popular. [12]
Versão publicada |
Correção manuscrita à margem |
Com efeito, dentro da melhor verossimilhança, esta se deu por intermédio da catequese jesuítica , tendo se desenvolvido em … |
Com efeito, o mais plausível é que esta tenha ocorrido por meio da catequese jesuítica , tendo se desenvolvido em … |
esta se deu > o mais plausível é que esta tenha ocorrido … |