Uma Universidade pública, gratuita, socialmente democrática e aberta ao talento
A Sala São Paulo viveu uma noite memorável no dia 25 de janeiro. Um concerto da Orquestra Sinfônica da USP (Osusp) marcou o início da comemoração dos 90 anos da USP.
O evento reuniu autoridades governamentais, entre eles o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva; o secretário Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação, Vahan Agopyan, que representou o governador Tarcísio de Freitas; o ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli; seis ministros de Estado, dentre eles o ministro da Fazenda, Fernando Haddad; além de ex-reitores, docentes, alunos e servidores da Universidade.
Leia a íntegra do discurso do Reitor da USP, professor Carlos Gilberto Carlotti Junior, na abertura da cerimônia.
“Hoje, quando celebramos os 90 anos da nossa Universidade de São Paulo, além da alegria, do orgulho legítimo e da confiança na potência transformadora do conhecimento, somos convidados a analisar nosso passado e a pensar nosso futuro. A grandeza da USP decorre do trabalho de excelência de gerações que pesquisaram, estudaram, ensinaram e difundiram o saber para o progresso do nosso país.
A universidade é resultado do pensamento livre que existia em nosso estado no final dos anos 20 e início dos anos 30, principalmente considerando as mudanças políticas e sociais após a derrota paulista na revolução constitucionalista.
Foi na redação do jornal O Estado de S. Paulo, sob a liderança de Júlio de Mesquita Filho e de Fernando de Azevedo, que a ideia tomou corpo. O que estava em questão eram os destinos da República e da democracia. Essas importantes figuras, em consórcio com os governantes estaduais e com o grupo dos Reformadores da Educação, autores do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, mobilizaram energias poderosas.
Havia interesses de classe presentes naqueles debates primordiais? É claro que sim. Há interesses de classe em todos os movimentos de todas as partes da vida social e aquele momento não foi exceção.
O lema que confere significado ao brasão da Universidade – Vencerás pela Ciência – condensa a teia dos sentidos presentes na mente de seus fundadores. Ou seja, o conhecimento é arma duradora e resistente às conjunturas momentâneas.
E, de fato, a USP foi uma resposta inteligente ao vácuo deixado pela crise política, instituindo um modelo de universidade pública, gratuita, socialmente democrática e aberta ao talento.
A USP foi pensada como uma instituição moderna, alicerçada na relação indivisível entre ensino, pesquisa e extensão. Pulsava nela uma visão de país que se ancorava na ciência, na razão e no valor da liberdade, um modelo estruturado, norteado por princípios científicos e por uma visão integrada de vida intelectual.
A essência do que foi pensado naquela época sobreviveu e cresceu nas décadas seguintes, até se converter no que celebramos nesta data.
Para que a USP fosse possível, uma consonância entre o passado e o futuro foi tecida. A USP nasceu pela agregação de seis escolas que já existiam, a Faculdade de Direito, nossa mais antiga unidade; a Escola Politécnica; a Faculdade de Medicina; a Faculdade de Farmácia e Odontologia; a Faculdade de Medicina Veterinária; e a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz.
Mas a Universidade também nasceu de uma visão moderna de futuro, que se traduziu na criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, um centro de altos estudos, concebida para realizar ciência desinteressada, buscando a universalidade do saber, e coordenar e integrar as atividades das demais escolas.
O projeto da USP foi, assim, inovador, ambicioso, plenamente realizado em curto prazo, revelação de uma arquitetura inusitada, se pensarmos as condições do país na época.
A USP ganhou vida ao sincronizar-se ao movimento ascendente de São Paulo e tornou-se parte da intensificação das mudanças que ocorriam em todas as esferas, revelando o elo entre a instituição e a sociedade.
A criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp – no final dos anos 40, formalizada em 1960 e consolidada em 1962, gestou uma parceria virtuosa entre as duas instituições, que se autoalimentaram. Daí, nascia uma relação que se fortaleceu e se constituiu em organismo central à diferenciação do sistema científico e cultural paulista.
Fora de São Paulo, no âmbito federal, deve ser salientada a contribuição fundamental do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, criado em 1951; e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, no mesmo ano, importantes agências de apoio e promoção da pesquisa e do ensino e fundamentais para o desenvolvimento da pós-graduação nas universidades brasileiras.
Projetos importantes também surgiram em São Paulo, com a criação de instituições universitárias coirmãs, como a Universidade de Campinas – Unicamp – em 1966, e a Universidade Estadual Paulista – Unesp, em 1976, produtoras de parte relevante da produção científica brasileira, que honram nosso sistema educacional.
A USP, a Unicamp e a Unesp têm merecido apoio integral dos dirigentes do estado de SP, tanto do poder executivo como do poder legislativo, cuja persistência no tempo e respeito à autonomia financeira e acadêmica garantem a expansão, o aprimoramento, o planejamento a longo prazo e a renovação institucional. As três universidades têm correspondido a esse apoio e se destacam por combinarem excelência acadêmica e de pesquisa.
Fundamental também foi a expansão da USP para outras cidades do estado. Excetuando a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, instalada em Piracicaba e pré-existente à fundação da USP, faculdades foram erigidas em outros municípios, formando verdadeiras cidades universitárias.
A criação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Escola de Engenharia de São Carlos e da Faculdade de Odontologia de Bauru, nos anos 50, e de novas unidades nos anos subsequentes, foram símbolos da expansão em direção a centros emergentes. Além disso, sinalizaram a preocupação em facilitar o acesso ao ensino superior de estudantes que teriam dificuldades em se deslocar para a capital.
Os sete campi da USP instalados em Bauru, Lorena, Piracicaba, Pirassununga, Ribeirão Preto, Santos e São Carlos são vetores de desenvolvimento regional no interior do estado. A criação da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, a EACH, em 2005, na zona leste da capital, em uma região socialmente vulnerável, acompanhou o espírito democrático presente no ideário dos fundadores.
O mapa do desenvolvimento econômico e social do estado de São Paulo tem forte sobreposição com os campi das universidades estaduais já citadas, e das instituições federais, como a Unifesp, a UFSCar e a UFABC.
A USP tem acolhido as demandas surgidas na cena social brasileira, haja vista o desenvolvimento de políticas afirmativas e inclusivas que a situam na vanguarda das universidades brasileiras e mundiais. As medidas para facilitar o acesso de estudantes das escolas públicas e de camadas sociais populares são inovadoras, bem como na diversidade e abrangência das políticas construídas.
Nossa excelência aumentou com essas iniciativas, nossa produção acadêmica se ampliou em número e qualidade e galgamos posições inéditas de destaque em rankings nacionais e internacionais. Em 2023, fomos classificados pelo QS como a 85ª universidade no mundo e a primeira da Ibero América. Foi a primeira vez na história que o Brasil teve uma universidade entre as 100 melhores do mundo.
Estamos formando líderes e produzindo pesquisas com excelência, acrescidos da diversidade.
Durante nossa história, tivemos momentos de dificuldades. Esta Universidade enfrentou o arbítrio do regime autoritário instalado em 1964, que aposentou lideranças intelectuais e científicas notáveis. Apesar de duramente atingida, a USP teve força para resistir e conservar seus fundamentos originais.
Recentemente também enfrentamos a pandemia da covid-19, que impediu o convívio universitário por mais de dois anos, obrigando a USP a se reinventar para manter suas atividades.
Reafirmando seus ideais, a universidade precisa estar continuamente se atualizando para responder aos problemas da sociedade, buscando novas soluções.
Para isso, presentemente, a USP tem priorizado as pessoas; a qualificação de suas pesquisas e a transferência desse conhecimento para a sociedade; o aperfeiçoamento da internacionalização nos nossos campi; o desenvolvimento sustentável; e a modernização do processo ensino-aprendizagem.
Considerando as pessoas, precisamos aprimorar as políticas de permanência estudantil e fortalecer a percepção de pertencimento à universidade. O ingresso dos alunos deve ser diverso, considerando as condições econômicas e étnico-raciais de nossa sociedade.
Mas, no momento da saída da universidade, essas diferenças já devem estar superadas e todos os alunos e alunas devem estar equiparados em suas capacidades profissionais e na formação de excelência, igualando suas perspectivas futuras, e com disposição para implementar mudanças na sociedade.
As condições sociais atuais também nos impõem a preocupação com a saúde mental de nossos alunos, servidores técnicos e administrativos e de nossos professores.
No que se refere à qualificação das pesquisas e à transferência do conhecimento, a USP tem criado Centros de Pesquisas interunidades e multidisciplinares em áreas de temas relevantes, como oncologia de precisão, inteligência artificial, agricultura tropical sustentável, fixação de carbono pela agricultura, amazônia sustentável, estudo sobre as instituições brasileiras e controle dos gases responsáveis pelo efeito estufa, além de institucionalizar 11 Cepids da Fapesp, dando mais autonomia aos grupos de pesquisa.
A USP produz cerca de 20% da produção científica do Brasil e o objetivo é qualificar cada vez mais essa pesquisa para aumentar seu impacto social.
Esse conhecimento precisa ser transferido para a sociedade por meio da inovação, entendida como uma ferramenta para induzir mudanças sociais, para o aperfeiçoamento de políticas públicas, para a transferência tecnológica para o setor privado e para a inovação nas artes e na cultura.
Para esse projeto, precisamos da colaboração de vários atores além da Universidade: o governo, o setor privado, a sociedade e o meio ambiente. Estamos buscando espaços na USP para que essas interações possam ser aceleradas. No momento em que São Paulo e o Brasil discutem modelos industriais, estamos prontos para colaborar.
A internacionalização é uma tradição na Universidade e muitas atividades já foram desenvolvidas e serão mantidas. Mas, agora, essa internacionalização entra em nova fase, com a implantação de laboratórios internacionais em nossos campi.
Já temos dois laboratórios franceses, o Institut Pasteur e o CNRS, que iniciaram suas atividades, e estamos negociando com dois institutos alemães e um inglês, além da criação de um centro USP-China para abrigar cooperações com universidades e institutos de pesquisa daquele país.
Essas ações permitirão que nossa comunidade universitária possa vivenciar o ambiente acadêmico internacional em todas as suas dimensões.
Quanto ao desenvolvimento sustentável, este tema deve ser uma prioridade para toda a sociedade e acreditamos que as universidades devem ser agentes importantes na busca de soluções para a saúde do planeta.
Estamos estudando e colaborando na identificação de energias sustentáveis para realizar a transição energética, na conservação da água e dos oceanos, no destino de resíduos sólidos e em novas metodologias para a fixação de carbono. Nossos campi devem ser modelos para a sociedade.
O desenvolvimento sustentável é uma oportunidade para o Brasil ser uma liderança mundial e criar um novo modelo econômico para melhorar as condições de vida da população. Não podemos perder essa oportunidade.
O aperfeiçoamento de nosso modo de ensinar também é prioridade. Nosso modelo de ensino passa por reorganização importante. As escolas e faculdades da USP estão revendo suas matrizes curriculares e apresentando projetos para que o ensino esteja de acordo com as necessidades da sociedade.
Devemos preparar jovens para profissões que ainda não existem, que exigem cada vez mais novas habilidades, como a comunicação e o empreendedorismo, e capacidade de adaptação durante sua vida profissional. Não é uma tarefa simples, mas há um desejo grande da comunidade em implementar essas modificações.
Ao longo de seus noventa anos, a USP se desenvolveu no compasso das transformações profundas ocorridas em São Paulo, no Brasil e na cena mundial.
Na data de hoje, quando exaltamos a USP, devemos valorizar nosso caráter público. A universidade pública e gratuita nasce do esforço indistinto de todos e todas e conflui para o atendimento das aspirações das coletividades e dos direitos e necessidades de cada pessoa.
Existimos para dignificar a nossa democracia, o nosso padrão civilizatório, para honrar a razão e para contribuir para o desenvolvimento de São Paulo e do Brasil. A USP é sinônimo de generosidade e de partilha.
Que venham mais 90 anos. Viva a USP!”
(Discurso proferido pelo reitor na cerimônia de abertura das comemorações dos 90 anos da USP, em 25/01/24)