Veto estranho e equivocado
Artigo do Acadêmico Nacim Walter Chieco:

Oportuna e certeira a manifestação da Academia Paulista de Educação contra a malfadada recente decisão da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo de implantar, na rede pública estadual de ensino fundamental e médio, como recursos didáticos, exclusivamente as tecnologias digital e audiovisual e de, ao mesmo tempo, vetar o livro didático impresso oferecido, gratuitamente, pelo MEC por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
É notável a mesma reação contrária de inúmeras outras entidades, de especialistas, da comunidade educacional e dos meios de comunicação. Até onde observo, nenhum pronunciamento de apoio a essa atrapalhada medida.
Associo-me à corrente de perplexidade e indignação e falo algo sobre a questão.
Cabe, desde logo, esclarecer que a desavisada interdição ao variado catálogo de livros didáticos constitui óbvia violação ao princípio, estabelecido no inciso III do artigo 206 da Constituição Federal de 1988, de que o ensino será ministrado com base no “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”.
Aponto, a seguir, algumas evidências desabonadoras desse grave equívoco.
É evidente a presença contínua e acentuada das tecnologias da informação e comunicação na nossa vida diária. Televisões de alta performance, tablets, smartphones, notebooks e, agora com intensidade surpreendente, a inteligência artificial. A ficção de algumas décadas passadas torna-se realidade.
Não há como negar a evidência de que tais avanços tecnológicos também impactam o cotidiano escolar, seja como conteúdo educativo, seja como mais recurso didático-pedagógico. É bom frisar o “mais recurso”, pois não se trata de único nem predominante. Continua com forte participação o tradicional livro didático impresso, desde as saudosas e eficientes cartilhas de enfoques pedagógicos diversos.
É indubitável a centralidade da dupla aluno-professor no processo educativo. Todo o restante constitui recurso a ser empregado pelo profissional do ensino, segundo seus interesses e habilidades e condições disponíveis. Toda e qualquer tecnologia, portanto, integra a proposta pedagógica de cada escola e é adotada conforme o potencial e a insubstituível atuação do docente. Mesmo na estratégia de educação a distância pressupõe-se a presença de um professor a distância.
Outra evidência: na educação, o livro didático constitui recurso utilizado praticamente desde os primórdios da cultura humana escrita. Modernamente, a tipologia de material didático impresso é extremamente diversificada, desde os chamados livros “fechados”, que permitem pouca intervenção do docente, até os compêndios “abertos”, com ampla liberdade de atuação do professor. Todos, porém, exercem o papel de importante coadjuvante do processo educativo.
Em todas as áreas de atividade humana e, particularmente, na educação, a introdução de prática inovadora requer experimento prévio, em pequena e controlada escala, e rigorosa avaliação comparativa de resultados. É o que manda a ciência e mesmo o bom senso. Em se tratando de política pública destinada a uma rede pública de ensino tão vasta como a paulista, esse cuidado de testar e avaliar hipótese torna-se indispensável e imperativo.
O mencionado PNLD do MEC é uma estratégia de apoio ao ensino, mediante oferta anual, gratuita para os alunos e para as redes públicas de ensino fundamental e médio, de livros didáticos impressos, desde os anos 80 do século passado. Nesse quase meio século de existência e funcionamento, muitos problemas, muita superação e muitos aprimoramentos. Por exemplo, foram superados os chamados “descartáveis”, utilizáveis apenas uma vez por um aluno. A sistemática de avaliação dos livros foi se aprimorando e dando sentido verdadeiramente curricular à oferta editorial e à produção autoral. Hoje, pode-se dizer, que se trata de uma feliz associação entre o governo federal, que é o comprador e avaliador, as editoras e autores, que são os fornecedores, e as redes, escolas, professores e alunos, que são os clientes finais. Trata-se, pois, de rara política e prática pública educacional brasileira bem sucedida e que merece total apoio da comunidade educacional e da sociedade.
As experiências mundo afora de ampla digitalização nas redes de ensino começam a ser reavaliadas e, até mesmo, revertidas. Os resultados de avaliações e os estudos evidenciam prejuízos no aprendizado e na leitura. O exemplo recente mais gritante é o da Suécia, país super desenvolvido sempre bem posicionado nas avaliações educacionais internacionais, que acaba de decidir por um retorno ao tradicional livro didático impresso.
Causa-nos estranheza a decisão da Secretaria de Educação paulista de implantar, na rede pública estadual, como recurso didático exclusivamente as tecnologias audiovisual e digital, descartando inteiramente os livros didáticos do PNLD. E, diante das reações contrárias, as esquisitices prosseguem com explicações e ajustes toscos e bizarros. Justifica-se a medida visando a uniformidade e coerência do ensino nas escolas estatuais. Ora, tal uniformidade reflete uma visão autoritária e massificadora do ensino. E a coerência? Com certeza, não é a coerência de uma concepção democrática, livre e plural de educação. Foi anunciado um ajuste de afogadilho: a produção audiovisual e digital poderá ser impressa e entregue aos alunos para estudo e anotação. Continua o material único, projetado e elaborado por “mentes brilhantes”, pretensamente perfeito para uso em toda a rede estadual.
A diversidade de livros do PNLD, a criteriosa avaliação prévia, a liberdade de escolha pelos professores, o reaproveitamento em anos seguintes e toda a experiência de adoções anteriores de nada mais valem em São Paulo.
Postura sensata seria a já praticada e salutar diversidade e convivência de recursos. Ou, ao menos, uma aplicação experimental de nova estratégia com independente e isenta avaliação de resultados.
Com as evidências apontadas, a medida, tal como vem sendo anunciada e executada, mostra-se um grande e desastroso equívoco, cujos maléficos efeitos poderão comprometer, ainda mais, a combalida qualidade do ensino básico público estadual de São Paulo.
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Nacim Walter Chieco é Membro da Academia Paulista de Educação. Este texto foi elaborado antes da liminar da justiça estadual paulista determinando que a Secretaria da Educação volte ao PNLD.