Discurso de Posse do Acadêmico Titular Sólon Borges dos Reis.
ACADEMIA PAULISTA DE EDUCAÇÃO
Discurso de Posse do Acadêmico Titular
SÓLON BORGES DOS REIS
Senhor Presidente,
Senhores Acadêmicos,
Dignas Autoridades,
Senhoras e Senhores:
Chegar à Academia Paulista de Educação pelo voto solidário dos que a integram, é honra que agradeço de público a cada um e a todos os acadêmicos, ilustres todos, pelo conhecimento e pela ação, e prestantes todos ao longo da vida devotada sempre à causa humana e social da educação.
Mas, não é só a honraria que agradeço. Também a oportunidade dupla: de conviver com os companheiros da instituição o convívio privilegiado dos que comungam ideais e partilham ideias e o de atuar, pelo pensamento e pela palavra, pela posição e pela ação prática, num cenáculo em que a motivação para meditar e dizer, para assumir e fazer, é a educação. A educação, mais do que um problema que cabe aos especialistas estudar e equacionar suas soluções, uma causa, humana, social e cívica, a que todos nós, especialistas ou não, nos devemos dedicar, no extremo limite das nossas possibilidades, por obrigação e interesse, dever e responsabilidade.
Ao investir-me hoje, formalmente, neste ato, nos encargos e prerrogativas acadêmicas, emposso-me com a consciência do galardão que representa para um educador o prêmio da Cadeira nº 32, cujo Patrono é Horácio Silveira, honrada pelo saudoso professor Arnaldo Laurindo.
Uma vida inteira dedicada ao ensino, o paranaense Horácio Augusto da Silveira, cujo centenário de nascimento transcorrerá no próximo dia 1º de janeiro, foi uma figura estelar no magistério de São Paulo. Daqueles que tiveram o privilégio de crescer às margens do Piracicaba e ali armar-se para as lides do ensino na histórica Escola Normal Oficial criada em 1897, “convivendo com colegas como Sud Mennucci, Thales de Andrade, Fernando Costa e outros a quem a fortuna reservava papel saliente em âmbito nacional”. Começou a carreira no magistério com a suprema glória de que se podia orgulhar um educador: a de professor de escola isolada na zona rural, a Escola do Bairro do Pântano, em São Simão. Fez carreira. Chegou à direção de escola no ensino primário. Mas o campo de atuação em que pôde projetar, em escala muito mais abrangente, sua capacidade de trabalho, poder de iniciativa e espírito organizador, situou-se no ensino profissional, mais tarde chamado de industrial, o ensino técnico. Organizador e primeiro diretor do Departamento do Ensino Profissional, que dirigiu de 1934 a 1947, deixou marcada sua passagem pela alta administração estadual do ensino com o trabalho sério com que impulsionou e deu estrutura ao ensino técnico, de que já nos orgulhamos no passado e que tanta falta faz hoje ao nosso desenvolvimento humano, social e econômico.
Homens de mérito nem sempre recebem de seus contemporâneos a justiça a que fazem jus. Criador dos primeiros cursos de dietistas e de puericultura no Brasil, disseminador de cursos profissionais na área ferroviária e portuária e para a complementação pedagógica e integração cultural do trabalhador da indústria, antes do advento do SENAI, estruturador da carreira do magistério profissional, partícipe importante na elaboração da Lei Orgânica do Ensino Industrial, de especial significado para esse ramo do ensino no país dos anos 40, Horácio Augusto da Silveira recebeu o reconhecimento oficial de seu valor pelas homenagens póstumas que lhe prestaram os professores e os poderes públicos, quando faleceu em 1959. Dentre as homenagens merecidas, significativa a que deu o nome do mestre à Escola de sua área em Bauru. Mas a homenagem maior lhe seria prestada por Arnaldo Laurindo, ao escolher, como escolheu, o nome de Horácio Silveira para seu Patrono, na Cadeira nº 32, na Academia Paulista de Educação.
Partindo de quem partiu, a escolha vale como um depoimento sobre a personalidade, a vida e a obra de Horácio Silveira. Porque Arnaldo Laurindo foi, antes de tudo, comedido, consequente, sóbrio. Palavra que proferia, opinião que dava, gesto que tinha, posição que assumia, era sempre pra valer, correspondendo indefectivelmente ao que ele sentia, ao que ele pensava. Privilegiado aquele que mereceu, assim, o reconhecimento público e póstumo pela iniciativa sempre honrada e honrosa de um educador da estirpe de Arnaldo Laurindo. Se, em Horácio Silveira, reputamos importante ter estudado na tradicional Escola Normal de Piracicaba, em Arnaldo Laurindo cabe assinalar o fato de, paulistano, ter feito seu curso na Normal de Botucatu. Diplomado em 1928, Professor de Escola Isolada, como Horácio, mais tarde professor e diretor de Grupo Escolar, passou pelo ensino comercial e pelo agrícola. Mas, o campo de ação administrativa e educacional em que projetou sua grande capacidade de trabalho, aliada a um amplo conhecimento das questões de sua área, foi a direção geral do ensino profissional do Estado. Na alta administração do ensino público, integrou o gabinete do Secretário da Educação e chegou a uma folha de serviços que abrangeu empreendimentos tanto de ordem técnica como administrativa, tanto na área do antigo ensino básico quanto na do antigo ensino médio. Representou o Ministério da Educação e Cultura no Conselho Técnico do SENAI, em São Paulo; presidiu ao Conselho de Cooperação do Fundo de Assistência ao Menor, na Secretaria da Justiça, e integrou o Conselho de Política da Agricultura do Estado. Nomeado pelos governos estadual e federal, destacou-se em diferentes comissões que exigiam muito trabalho, conhecimento de causa e senso de responsabilidade, não só na área do ensino mas na da ação social e da cultura, campo em que foi distinguido pelo Ministério da Educação e Cultura com o Diploma e a Medalha de Rui Barbosa. Sua passagem ficou assinalada no Conselho Estadual de Educação, pelo devotamento e capacidade com que desempenhou as funções que ali lhe estavam afetas. Nunca se limitou às atividades próprias de sua profissão ou de seus encargos no ensino e na administração pública. Deu sempre algo mais de si em prol da comunidade. Foi sempre assim. Desde Batatais e Jacareí, onde desempenhou, com amor, as funções gratuitas de Comissário de Menores, até à militância política em que, sob o signo da coerência, da fidelidade, do trabalho e da responsabilidade, chegou à Assembleia Legislativa do Estado, desempenhando, como suplente, o mandato parlamentar com seriedade e sem demagogia, como demonstram os Anais da Vida Parlamentar do Estado e as leis de interesse público, todas no campo do ensino, que resultaram de oportunos projetos de sua autoria. Preocupado ainda com o papel do professor na obra da educação, figura central de toda a estrutura escolar, a serviço do aluno, integrou-se Arnaldo Laurindo no Centro do Professorado Paulista, fundado em 1930, e hoje a maior entidade de classe do magistério em toda a América do Sul. Eleito para o Conselho Superior e Presidente da entidade, em sua gestão fecunda registra-se além da defesa dos direitos e legítimos interesses dos professores e do trabalho pelo ensino, dentre outras iniciativas no campo interno da entidade, e construção da primeira Colônia de Férias, instalada em Mongaguá, na Praia Grande, no Litoral Paulista. Tais foram os serviços que prestou, como sócio, conselheiro e Presidente do CPP, que, por decisão da Assembleia Geral, depois de ter deixado a presidência, recebeu o título honroso de “Diretor Honorário”. Um educador que, dignificando a sua classe, serviu à infância e à juventude, ao país, intensamente, devotadamente, no ensino, na administração pública, no parlamento. E, onde quer que lhe cometessem um encargo, dele se desincumbia, sem rejeitar trabalho, infenso ao brilho superficial e efêmero das luzes da ribalta, concentrado no afã contínuo, persistente e silencioso, de sua operosidade sem alarde.
Quanta honraria, senhores acadêmicos, para um professor que, como eu, provindo igualmente de uma daquelas dez tradicionais escolas normais oficiais do Estado, a de Campinas, tão decisiva, se não mais do que os cursos universitários posteriores de Pedagogia e Direito, passou pelo ensino primário, secundário, normal e superior, esteve na administração do ensino, desempenhou também o mandato parlamentar, na mesma Assembleia, honra-se no mesmo Conselho Estadual de Educação, sócio, conselheiro e presidente do mesmo Centro do Professorado Paulista e hoje, pela decisão dos companheiros, toma assento na mesma Academia, sob o signo desse mestre de todos nós, enquanto vivo e ainda agora pelo exemplo edificante que nos legou a todos: Arnaldo Laurindo.
A um público que comparece a cerimônia como esta, numa Academia de Educação, não há por que encarecer a importância que a educação assumiu como direito, obrigação e necessidade. Apenas lembro de passagem que meus avós, imigrantes portugueses e italianos, eram analfabetos, enquanto meus netos frequentam cada um deles duas Faculdades, porque em pouco tempo tudo já mudou tanto.
Ao assumir esta Cadeira na Academia Paulista de Educação, trago nos ouvidos, na mente e no coração as palavras, a linha e o alento do discurso de posse do acadêmico que me precedeu, quando se empossou, em junho, o eminente professor Samuel Pfromm Neto, ao responder à esplêndida saudação do acadêmico João Gualberto de Carvalho Meneses, com um pronunciamento de vigor, atualidade, encarando a realidade educacional brasileira sem disfarces nem preconceitos, como também sem modismos nem concessões demagógicas ao que quer que seja. E é o de que estamos urgentemente precisando. A análise da realidade, das necessidades, a avaliação das possibilidades e perspectivas da conjuntura educacional, para servir apenas e exclusivamente ao direito natural e às exigências humanas, sociais e nacionais da nossa gente e da nossa terra.
Enquanto aqui nos reunimos, ao redor de uma instituição que é uma manifestação positiva de fé no que pode e deve fazer a educação, fora, o clamor ultraiconoclástico. Pelo que gritam os “slogans”, nada presta. Nada se fez até agora, ou melhor, tudo o que se fez foi errado, por incompetência ou por cálculo e porque é prejudicial tem que ser enxovalhado. Tudo tem que ser arrasado, para que se levante então sobre os escombros do que existe o paraíso social.
Na realidade, o clamor contra a qualidade da educação e do ensino foi sempre uma constante em nosso país. Um levantamento documental dos relatórios e juízos feitos sobre o ensino brasileiro, em qualquer época, demonstra à saciedade a insatisfação de todas as gerações que nos precederam com o ensino de seu tempo. Não se tem notícia nos arquivos, nos jornais, nos livros, na crônica de época alguma, em que se encontrasse o conformismo dos críticos, especialistas ou leigos em educação e ensino, com as condições de estrutura e funcionamento da escola no respectivo tempo. Hoje, como sempre, todos nós nos insurgimos contra a escola que temos e nos voltamos, muitas vezes com razão, para os bons tempos de antes. É uma insatisfação natural. A escola teria feito mais, no passado, do que está conseguindo agora. Com um alunado diferenciado por condições sociais e econômicas e também pelo voluntariado dos que, embora sem as mesmas possibilidades financeiras e sem o mesmo “status” social, chegavam às salas de aula impulsionados pela predisposição natural, potencial biopsicológico e moral, a fim de aproveitar ao máximo a escola para abrir caminho. O alunado hoje é o mais heterogêneo que se possa imaginar. Ensino obrigatório, educação como um direito, educação uma necessidade impostergável, todos vão á escola. E todos pretendem ultrapassar o ensino básico, que já não é apenas de quatro, mas de oito anos obrigatórios. Além do segundo grau, as multidões batem às portas da Universidade. Todos sabemos, contudo, que um percentual da população escolar matriculada nas primeiras séries do ensino de primeiro grau, não tem condições biopsicológicas, e, portanto, naturais, para frequentar, com proveito, uma escola comum, e precisaria, isso sim, do ensino especializado. O professor de ontem, que trabalhava com classes homogêneas, ao menos pela origem da clientela escolar, podia, por isso, seguir em frente, acompanhado pela classe. Hoje, só excepcionalmente isso pode ocorrer, em escolas favorecidas pela localização, organização e propósitos. Na escola comum, é trabalhar com classes extremamente heterogêneas, superlotadas, em condições adversas. É que o crescimento dos recursos destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino está longe de acompanhar o crescimento das necessidades sequer quantitativas da população em idade escolar. É duro, mas útil reconhecer que neste mesmo Estado, o mais rico, o mais adiantado da Nação, continuamos a oferecer escolas com apenas um pedaço de dia letivo. Assim mesmo, aos que conseguiram matrícula, pois embora as estatísticas continuem desatualizadas e inseguras, como sempre foram, há afirmações oficiosas e até oficiais de que centenas de milhares de crianças continuam sem escola na faixa etária dos 7 aos 14 anos. Enquanto continuarmos sem poder oferecer nem mesmo um mínimo de horas diárias de escola, aos que dela têm direito, e até, pela Constituição, a ela são obrigados, pouco ou nada há para esperar em matéria de ensino. Porque a igualdade de oportunidades em educação exige que implantemos um regime escolar em que a criança permaneça o dia todo na escola: um período em sala de aula, outro em atividades educativas, tão importantes e às vezes até mais do que as da sala de aula. O que temos, no entanto, é uma contrafação do dia letivo, reduzido à expressão mínima, a ponto de autoridades escolares não se pejarem de confessar que continuamos com escolas de 3, 4, 5, 6 e até 7 períodos num mesmo dia. E isso vale dizer que a criança frequenta vários anos a escola para aproveitar apenas a escolaridade de um ano. Tudo por não ter ainda a Nação optado pela educação como prioridade nacional e os governos continuarem a tirar o corpo, procurando apenas se desvencilhar do problema. Não há nenhum sintoma à vista de que se pretenda mesmo partir um dia para enfrentar a questão como é preciso: objetiva e corajosamente.
A queixa da opinião pública, por esse prisma, é procedente. Para as enormes necessidades da atualidade, na criamos condições nem mobilizamos recursos compatíveis com o mínimo sequer do que é preciso.
Mas, a grita contra a qualidade, por parte de intelectuais, inclusive de entendidos, comporta outro enfoque. Se entendermos que a educação perde em qualidade, devemos analisar a questão partindo do conceito de qualidade. Que é a qualidade, afinal de contas, em matéria de educação?
A qualidade da educação tem sido geralmente considerada superficialmente em termos de rendimento do trabalho escolar apenas. Quanto a isto, quanto ao rendimento do trabalho escolar, a escola, para dar cumprimento às suas novas, mais amplas e complexas responsabilidades, promovendo, como hoje se quer, a educação integral, precisa rever a sua estrutura, atualizando-a, ampliando-a, na conformidade das necessidades do seu tempo. Enriquecer a estrutura com instituições escolares que possam complementar a ação da sala de aula. Sem a sala de aula, onde mais comumente se cultivam valores intelectuais como a inteligência, a raciocínio, a memória, é difícil caracterizar uma escola. Mas, só com a sala de aula não dá mais para a escola cumprir com seus objetivos atuais. É preciso recorrer a outras instituições, tão importantes como a sala de aula e às vezes apontadas, por equívoco, como auxiliares da escola, quando na realidade são tão escolas como a própria sala de aula. A estrutura e o funcionamento da escola devem adaptar-se aos compromissos atuais da escola e isso implica em transformação e enriquecimento de currículos, de metodologia, do regime escolar, do ambiente e da utilização dos recursos tecnológicos contemporâneos. Tudo em função do aluno, pedra angular de todo o trabalho, para o qual a escola foi criada. E, depois do educando, o educador, tanto para a função docente quanto para as demais da vida escolar em que a figura do diretor que pode ser um entrave ou uma garantia, desanimando ou motivando. Porque continua verdadeira a afirmação de que uma escola será o que for o seu diretor. E quando se menciona o profissional do magistério, há a considerar toda a sua problemática: desde a formação e o processo de recrutamento, à garantia no trabalho, à carreira, à remuneração, à aposentadoria.
A qualidade da educação e do ensino está, porém, em função também de sua adequação à realidade socioeconômica. O homem não é um ser abstrato. Nem isolado. Vive inapelavelmente inserido num contexto socioeconômico que pode não ter inventado, mas do qual não consegue escapar e que condiciona em alta escala a sua vida toda. A preparação profissional, assim como a educação econômica constitui uma necessidade imperiosa, impostergável. Tanto para o indivíduo quanto para a comunidade. E, neste capítulo, o da educação à luz das condições socioeconômicas, entra a fundo todo o sistema de formação profissional em face das perspectivas do mercado de trabalho e da própria realização pessoal do educando sem apriorismos nem preconceitos.
A qualidade da educação, tão discutida e universalmente condenada, pode ser considerada à luz do rendimento do trabalho escolar, em termos de escolaridade, sob o ponto de vista exclusivamente pedagógico. Deve também ser entendida em suas implicações socioeconômicas, dado que a escola está em função da comunidade que a cria e mantém e à qual serve e que a preparação profissional é uma necessidade irrecorrível a cada um e a todos em qualquer parte, sob qualquer regime.
Antes, porém, tem que ser conceituada principalmente nos aspectos que concernem à filosofia da educação. Isso é preliminar, e tudo o mais é decorrência. Pois, antes e acima de tudo, é aí que se situa o fulcro, o núcleo de toda a verdadeira e dificílima problemática educacional. Antes de adentrar quaisquer outros setores da questão, antes de pensar em financiamento, planejamento ou avaliação, metodologia ou didática, antes de verificar tudo o mais que possa haver matéria de educação e ensino, é preciso pensar na filosofia da educação, que deve aflorar naturalmente da própria filosofia da vida.
A análise das virtudes e dos defeitos do sistema escolar com que contamos passa necessariamente por uma definição de valores. Porque todo e qualquer esforço, em termos de educação, estará comprometido e pode anular-se, ou mesmo chegar a resultados contraproducentes, se não partir de uma nítida compreensão dos fins que, implícita ou explicitamente, se tem em vista.
A primeira pergunta que se coloca a quem quer que assuma a responsabilidade diante do problema educacional, governos, pessoas ou instituições, só pode ser a teleológica: Quais os fins? Para quê? Para onde? Que pretendemos fazer, ou melhor, oferecer àqueles cuja educação nos foi confiada? Em que direção encaminhar a infância que aí está? Que futuro desejamos para a mocidade de agora?
A educação não é onipotente. O educador não pode tudo. Seu poder tem limites muito fortes, a partir da natureza do educando. Se fossemos onipotentes, se pudéssemos tudo, como educadores, que faríamos da infância e da juventude cuja educação nos houvesse sido confiada? Prepararíamos atletas analfabetos? Ou sábios raquíticos? Ou atletas eruditos, mas cínicos? Ou ainda sábios atléticos, mas desleais? Ou mesmo sábios, atletas, patriotas, ateus e perdulários? Que tipo de homens sonhamos surgir das crianças e dos jovens cuja educação nos está confiada? Qual é o propósito que nos inspira para definir, pelos rumos, a obra da educação?
Definir, antes de tudo, uma filosofia da educação, é tarefa fundamental. Se o propósito fosse apenas instruir, tudo seria muito, mas muito fácil. Mas, educar, mais do que transmitir informações, dar conhecimentos, propiciar habilidades, é mais complexo do que instruir. É preciso formar hábitos, mudar procedimento. Saber que se deve ser pontual, é uma coisa. Ser pontual é outra, muito mais importante. A informação obtém-se mais facilmente, fora da escola, através dos meios de comunicação de massa, rádio, cinema, televisão, publicidade, com motivação mais penetrante do que a da escola. A grande dificuldade, o nó górdio, o ponto de estrangulamento do imenso desafio educacional da atualidade, em qualquer parte do mundo, não é o problema da instrução, aquisição de informações, transmissão de conhecimentos, domínio de habilidades. Não é só isso. Mas, a necessidade maior da formação integral, o que pressupõe postura, atitudes, hábitos, procedimento. E para essa dificuldade maior, a da formação, a responsabilidade da escola hoje é a transmissão de valores.
Numa época em que a técnica, aplicação prática da ciência, com o seu impacto formidável sobre a sociedade, faz estremecer o estabelecido, amedrontando as gerações adultas ao mesmo tempo em que as fascina com a mudança deslumbrante que acarreta, o educador, pai ou mestre, sente a perplexidade da rápida revisão e sucessão de valores. E essa perplexidade o leva a indagar de si mesmo, a cada instante, se o melhor é condescender e facilitar, soltar a criança e o jovem, aluno ou filho, ao sabor da moda, a imitação do presente, ou contê-lo, em consonância com o costume, a imitação do passado, com o pressuposto de estar procurando sempre o que seria melhor para ele. A educação é mesmo um processo finalista. Educar, queira-se ou não, é nortear, com um fim em vista. E a dificuldade parece crescer, o terreno mover-se e fugir sob nossos pés, quando os valores mudam tão depressa e o que ontem era corrente, pacificamente válido, hoje pode não ser. Nortear para o amanhã. Mas, como será o amanhã? Educar para o que há? Para o que já houve? Para o que supomos que haverá? Ou para o que gostaríamos que houvesse? Como será o amanhã? Para os educadores, cristãos, humanistas pela natureza de sua missão, nunca se há de perder de vista a convicção dos valores permanentes. Por mais que mudem as condições sociais, há valores perenes, imanentes à própria criatura humana. Evolua a técnica como evoluiu, transformem-se as sociedades como se transformaram, o educador não educará nunca para a hipocrisia, a deslealdade, a bajulação, a subserviência, a calúnia, a covardia, a intolerância, a perversidade, a ingratidão, a injustiça ou a indignidade. E não subestimará jamais o homem e seu potencial de generosidade, integrado, sim, na contingência social, mas inseparável sempre de sua condição humana. As metamorfoses da civilização não atingirão jamais a substância, o cerne da natureza humana.
Acusa-se a escola de ser exclusivamente conservadora, de concorrer, como instrumento das classes dominantes, para perpetuar iniquidades da ordem política e econômica, como obstáculo à justiça social, base imprescindível da vida democrática.
Apesar de eminentemente conservadora, recorrendo continuamente ao passado a fim de cumprir sua missão de transmissora da herança cultural, a educação carrega no recesso de suas entranhas o gérmen da sua própria transformação. Ao espicaçar o espírito inventivo e propiciar as bases e instrumentos para dar à luz o que é novo, a educação lança os alicerces do futuro e se projeta sobre o amanhã. ]
A escola é o ponto de intersecção, o ponto em que se cruzam o ontem, o hoje e o amanhã, o passado, o presente e o futuro.
A escola espelha na realidade a sociedade que a mantém. Mas não se pode negar a ação dupla que desempenha. É conservadora, sim, na medida em que mantém, e deve manter, e propaga, e deve propagar, de geração a geração, a herança social, que é o que garante o progresso com o seu nome novo, o desenvolvimento. Sem essa ação transmissora e preservadora de todo o acervo cultural que as gerações anteriores somaram e acumularam para nós, até onde regrediríamos? À idade da pedra lascada? Mas a escola inova em extensão e profundidade. Acende as luzes do caminho. Arma, com as armas básicas, para o prosseguimento da jornada. Não inculca necessariamente nada de definitivo, mas abre perspectivas no essencial, principalmente a escola básica, sem a qual a posterior não tem sentido. Da mesma escola em que saíram sempre os reformadores e os revolucionários, saíram em todos os tempos os que sustentaram posições e teorias diferentes, e até antagônicas, seus opositores.
A função política, no sentido lato do termo, é inerente à própria ação da escola, e por isso mesmo é universal e existiu e existe em todos os tempos e regimes.
Constatei “in loco”, nas escolas dos Estados Unidos, de 1º, 2º e 3º grau, a mensagem de vida identificada com os valores sociais, econômicos, morais e cívicos, que emanam da filosofia da educação, adotada histórica e atualmente pela nação americana. Vi nos campos de pioneiros da União Soviética as crianças de idade pré-escolar, reverentes ao culto da personalidade, lenço vermelho no pescoço, sob os parâmetros do regime, diante do nicho de Lênin, altar sagrado, tabu indispensável em todas as escolas e demais recintos públicos do grande país. Iniciadas nos valores marxistas, é sob sua égide que crescem e desenvolvem a personalidade, através de todo o sistema escolar, que é monopólio do Estado, inclusive a Universidade, que em Moscou também se chama Lênin, submetendo a infância e a juventude, como o povo todo, a uma integração compulsória e exclusiva dos valores marxistas-leninistas, sem qualquer outra alternativa. Tudo isso com a facilidade que não temos de dizerem a escola, a imprensa, o rádio, a televisão, o teatro, o governo e o partido, assim como tudo o mais que possa influir na postura e no procedimento das pessoas e da coletividade, numa orquestração unânime, monocordiamente, a mesma coisa, para sustentar a mesma e indiscutível verdade oficial.
E assim é em toda parte. Ainda agora, acabo de regressar da África Negra e do Marrocos, onde pude comprovar o que todos já sabemos, de que nas salas de aula se consagra na prática a compatibilização do ensino e da educação com a filosofia de vida que inspiram aqueles povos. Nas Medinas de Fez ou de Marrakesh, como em qualquer cidade ou aldeia muçulmana, a criança marroquina já é iniciada, compulsoriamente, nas salas da pré-escola, nas verdades intocáveis do Alcorão, nos postulados da religião maometana, que fundamenta, orienta, disciplina e condiciona, sem qualquer questionamento, toda a educação dos povos que vivem a filosofia de vida do Islã.
Não há como ser diferente. Só por ignorância, mas é quase sempre por má fé, que se nega todo e qualquer valor à escola brasileira do passado e do presente, na base de uma pregação sofismada, de uma política de terra arrasada, como se a solução fosse a implosão de tudo o que foi construído até agora para, sobre os escombros do que nos trouxe até aqui, partir para uma aventura cujo propósito ninguém se propõe a honestamente definir.
Esses riscos e dificuldades não são, no entanto, privativos do Brasil. Ao contrário, são comuns a toda a chamada civilização ocidental, que está pagando o preço da livre iniciativa e do empenho em preservar a liberdade. A preservação da liberdade custa o preço do estado de contestação e antagonismo permanente e o esforço pela democracia está ininterruptamente exposto às pressões que querem reduzir tudo, numa ditadura irreversível, ao mesmo denominador comum, em que a dignidade pessoal não conta e em que a unidade será substituída pela uniformidade. Caso em que não haveria mais o que questionar, porque não sobraria mais lugar para a divergência.
A intermitência do processo democrático, com seus longos e frequentes períodos de abstinência política por parte do povo, responde em parte pela deformação educacional, atrofiada a dimensão política, mesmo no caso dos que puderam cultivar bastante, e, às vezes no mais alto grau, os melhores valores de outra ordem: intelectuais ou físicos, morais ou sociais, profissionais, estéticos ou religiosos e mesmo cívicos, que não são exatamente os mesmos do plano político.
A deficiência da educação política não é, no entanto, apenas consequência da instabilidade das nossas instituições. É também causa. Não há dúvida que estamos aí diante de um círculo vicioso.
De nossa parte, reputamos que três medidas são, em qualquer hipótese, essenciais à educação política das novas gerações: a) – informar as gerações novas sobre o significado, as instituições, as estruturas e o desenvolvimento do processo político; b) – ensejar a prática da dinâmica da política por parte dos jovens; c) – despertar e acoroçoar o espírito crítico nas gerações que crescem, com a convicção de que uma geração bem informada e que houver desenvolvido suficientemente seu espírito crítico não será presa jamais de qualquer totalitarismo de esquerda, nem de direita.
O quadro de valores para inspirar o nosso processo de educação e ensino encaminha-nos, por certo, a uma formação integral da juventude, de modo que se compatibilize o preparo técnico imprescindível à condição social do homem e o acrisolamento dos pendores humanos, de modo que o papel social se case com a realização pessoal.
Se desse quadro fosse oportuno pinçar um valor capaz de concorrer para o desenvolvimento nacional e a realização pessoal, não teríamos dúvida em destacar o cumprimento do dever como a maior carência dos nossos tempos, segundo lembrou bem Kennedy, e que, ao lado da luta pelos direitos humanos, tem que ser cultivado no interesse da comunidade e da pessoa. A responsabilidade pessoal em todos os níveis e em todos os setores e momentos da vida individual e coletiva há de ser cultivada.
Cícero já havia dito que “não há período na vida, pública ou particular, isento de deveres”. E o apóstolo Paulo, na epístola “Ad Galatas”, deixou a mensagem: “cada qual carregue sua própria carga”.
A consciência do dever cumprido dá uma satisfação íntima muito importante para se emprestar sentido à vida e valorizá-la sempre. Sem nenhum dever a cumprir, disse Jouvert, em seus “Pensées”: “A vida é alguma coisa flácida e sem esqueleto, e não pode manter-se de pé”.
Que cada um faça o seu dever, condição sem a qual a ninguém é lícito esperar que só os outros cumpram a parte que lhes compete. Como dependemos constantemente da responsabilidade alheia, parece-nos sempre razoável esperar que os outros façam, sem falhar, o que devem fazer. O mesmo, então, será igualmente válido por parte dos outros em relação a nós. Eles também contam conosco.
E deixar de lado o desempenho de um dever, por pequeno que seja, é abrir o caminho para negligenciar os grandes, como lembrava madame Necker.
É Kant que eleva mais alto a apologia do dever quando, na “Crítica da Razão Pura”, confessa não conhecer senão duas coisas belas no universo: “O céu estrelado sobre nossas cabeças e o sentimento do dever”.
Saint-Exupéry, generoso exemplo de humanista de ação prática, testemunha eloquente de que não há incompatibilidade entre o aviador e o poeta, em cuja personalidade, vida e obra se conjugaram a poesia e a técnica, a reflexão filosófica e a missão militar, o que combateu pela pátria e amou ao próximo como a si mesmo, escreveu na sua obra-prima “O Pequeno Príncipe”: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa…” E em “Piloto de Guerra”: “Cada um é responsável por todos. Compreendo, pela primeira vez, um dos mistérios da religião donde saiu a civilização que reivindico como minha… Carregar os pecados dos homens… e cada um de nós carrega os pecados de todos os homens”.
“A coragem de Saint-Exupéry em ‘Terra dos Homens’”, diz Guilaumet, “é, antes de tudo, um efeito de sua probidade. Sua verdadeira qualidade não é essa. Sua grandeza é a de sentir-se responsável. Responsável por, pelo avião, pelos companheiros que o esperam. Ele tem nas mãos a tristeza ou a alegria desses companheiros. Responsável pelo que se constrói de novo lá entre os vivos, construção da qual ele deve participar. Responsável um pouco pelo destino dos homens, na medida do seu trabalho. Ser homem é, precisamente, ser responsável. É experimentar vergonha em face de uma miséria que não parece depender de si. É ter orgulho de uma vitória dos companheiros. É sentir, colocando a sua pedra, que contribui para construir o mundo”.
Em toda a magnífica obra de Saint-Ex, como o chamavam os íntimos, o sentido da responsabilidade permanece presente. Desde “O Pequeno Príncipe” à “Terra dos Homens”. Como no “Piloto de Guerra”, em que ele disse: “Para ser é preciso, antes de tudo, receber um fardo. (…) Cada um é responsável por todos. A França era responsável pelo mundo”.
Duas forças antagônicas se enfrentam no homem. O egoísmo e o altruísmo. O egoísmo é natural na criatura humana. Nasce invariavelmente com ela. Há quem entenda que o homem nasce naturalmente mau, ou pelo menos egoísta. Em termos bíblicos, depois do pecado original, o homem nasce mau e é redimido posteriormente, a começar pelo batismo, através da iniciação religiosa. Egoísta, ciumenta, destruidora, a criança nasce má? Que instintos e tendências a conduzem, antes que a educação a encaminhe, com o ideal para a convivência com o semelhante, em termos de solidariedade e de amor. Nunca foi necessário estimular o egoísmo para que os homens pensassem em si mesmos e agissem em função de seus interesses e conveniências. O mandamento necessário foi o do amor ao próximo. A pregação de milênios continua a ser a mesma: pensa também no teu irmão.
A cada minuto a opção tem que ser tomada. Pensar só em si ou também no próximo? Nas decisões maiores, nas grandes encruzilhadas da vida ou no cotidiano, o dilema é sempre constante. Cedo ou não cedo meu lugar no ônibus ao mais velho, fraco, doente ou necessitado? Ceder é atender ao impulso do altruísmo? Mas… o comodismo é outro nome do egoísmo.
Narciso, o enamorado de si mesmo, seria talvez o extremo. Em termos caricatos, estão exagerados os traços de consideração exclusiva a si mesmo. Mas, não é preciso chegar a extremos para encontrar a cada passo a presença do egoísmo. São as forças que a natureza colocou no homem. O instinto de conservação do ser ou da espécie com todas as implicações, das ostensivas às mais sutis. E as derivações psicológicas, objeto de estudos psicanalíticos. De Freud, Adler, Young e seus seguidores: a necessidade de afirmação, a tendência à competição.
O altruísmo há que ser acoroçoado. Se para a projeção do egoísmo não se faz necessário estímulo, o altruísmo pode e deve ser motivado, estimulado, incrementado. O egoísmo é força necessária à sobrevivência. Pois, o altruísmo é indispensável à vida social, e esta, por sua vez, é igualmente natural. Egoísmo é preocupar-se consigo mesmo e só agir em função dessa preocupação. Altruísmo é preocupação com os outros e em função disso proceder. Aqui entra a responsabilidade, que é um novo nome para o amor.
Ocupar-se e preocupar-se exclusivamente consigo mesmo é eximir-se da responsabilidade. E isso nada tem a ver com o amor. Amor é pensar, sentir e agir em função também do interesse do próximo.
A responsabilidade deve ser predominante em qualquer escala de valores inspirada numa filosofia de fundo cristão ou, em qualquer hipótese, espiritualista e humanista.
Mais do que a obstinada busca do ideal, do que o permanente serviço ao bem comum, responsabilidade não é só o acrisolamento cristão, espiritualista e humanista, do dever. Responsabilidade é amor.
Comecei este pronunciamento agradecendo. Quero terminá-lo também agradecendo. Agradeço, na pessoa do presidente Valério Giuli, a recepção amiga de cada um e de todos os companheiros da Academia. Agradeço aos companheiros do Centro do Professorado Paulista a investidura nesta Casa. Agradeço a todos os que aqui vieram a presença solidária, a atenção encorajadora, o estímulo de confiança. Agradeço especialmente ao Acadêmico Rosalvo Florentino de Souza a generosidade de sua saudação. Trata-se de um companheiro de ideais e de ideias, de iniciativas e lutas, amigo certo nas horas incertas, com quem me identifiquei ao longo de várias décadas e a quem agradeço agora o prêmio da sua amizade e a bondade da sua palavra.
Eu agradeço sempre.