Artigo – Não se deve abrir mão da escola pública
O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, autorizou a continuidade do projeto do governador Tarcísio de Freitas que prevê a terceirização da gestão de serviços não pedagógicos nas escolas estaduais paulistas. Neste artigo — escrito antes da decisão do Supremo — o professor Nacim Chieco analisa a proposta e seus possíveis impactos sobre a escola pública.

por Nacim Walter Chieco
Se tudo o que há é mentira,
É mentira tudo o que há.
De nada nada se tira,
A nada nada se dá.
Fernando Pessoa. Poesias inéditas
Fatos recentes reacendem o debate sobre terceirização de serviços relacionados à estrutura e funcionamento de escolas públicas. Como sói acontecer, nessas ocasiões circulam verdades, mentiras e equívocos sobre o tema em pauta.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão liminar, determinou a suspensão do processo licitatório de construção e manutenção pela iniciativa privada de 33 escolas públicas estaduais paulistas, conforme matéria publicada na Folha de S. Paulo, de 13/3/2025, pág. A38. A manutenção dessas 33 mais 143 unidades existentes ficaria a cargo dos consórcios vencedores da licitação pelo prazo de 25 anos. Na justiça, o pedido da corporação sindical dos professores e a decisão do juiz se fundamentam no princípio constitucional da “gestão democrática do ensino público” (inciso VI do art. 206 da Constituição Federal) e no conceito da indissociabilidade entre o espaço físico e a atividade pedagógica. Princípio e conceito irrefutáveis. Considero inadequado, porém, empregá-los para inviabilizar a terceirização de funções não estritamente educacionais, por meio de parceria público-privada.
Sempre fui e continuo sendo defensor da escola pública gratuita, laica e para todos. Na questão presente, porém, tenho ressalvas e, com certeza, vou desagradar muita gente.
É preciso, antes de tudo, identificar no universo escolar as funções e atores estritamente educacionais e os não educacionais. Aluno e professor são os atores absolutamente essenciais, sem os quais não existe escola. O diretor, por seu turno, comanda o funcionamento da escola e promove a articulação institucional. Completam o quadro das funções educacionais a coordenação pedagógica e as múltiplas formas de apoio direto ao ensino e ao aluno. A própria secretaria escolar apresenta características específicas da atividade educacional. Tais funções e atores da escola pública são intransferíveis e indelegáveis. Em suma, não se deve abrir mão, de forma alguma, dessa parte da escola pública.
Há outras funções e atores não estritamente educacionais, igualmente presentes em organizações não escolares, que podem ser, total ou parcialmente, terceirizados sem comprometer a proposta pedagógica da escola. Nesse campo encontram-se: projeto, construção, montagem, manutenção e reforma de prédios escolares; limpeza; vigilância; alimentação (cantina e merenda); jardinagem; manutenção de sistemas e equipamentos; serviços gerais. Embora não estritamente educacionais, tais funções e atores precisam assumir o compromisso de pleno e ativo alinhamento ao processo educativo. A merenda, que cada vez mais constitui política municipal e estadual permanente de apoio alimentar ao alunado, permanece como tarefa pública. Quanto às demais, pode-se dizer que o desejável é liberar o diretor das mesmas para que possa se dedicar ao foco estritamente educacional. Mantendo sempre o controle, a avaliação e a autoridade para descontinuar qualquer atividade realizada em desacordo com as disposições contratuais.

A propósito da mencionada iniciativa do governo estadual paulista, é preciso deixar claro que, de longa data, nem todo projeto de construção, reforma e manutenção de escola pública ficou a cargo inteiramente de órgão público. Um pouco de história a esse respeito. Em 1959 – no Governo Carvalho Pinto, Secretário da Educação Chopin Tavares de Lima – foi criado o Fundo Estadual de Construções Escolares (FECE). Em 1975 o FECE foi substituído pela Companhia de Construções Escolares do Estado de São Paulo (CONESP), no Governo Paulo Egydio Martins, Secretário da Educação José Bonifácio Coutinho Nogueira. Em 1987 foi criada a Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), no Governo Quércia, Secretário da Educação Chopin Tavares de Lima. Essas entidades tinham, e a FDE ainda tem, as atribuições de planejar, projetar, construir e manter a rede escolar paulista. Inicialmente, cumpriam essa missão por meios próprios. Gradativamente, porém, passaram a se dedicar ao gerenciamento dos recursos financeiros necessários à expansão e manutenção da rede, à definição de padrões e modelos de arquitetura e montagem de escolas, aos processos de licitação de obras e equipamentos escolares e ao acompanhamento e avaliação da execução de projetos. Com a definição de modelos arquitetônicos, os projetos construtivos se ajustam às dimensões e à topografia de cada unidade. A exemplo do Rio de Janeiro com Oscar Niemeyer, grandes nomes da arquitetura paulista, como Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha, participaram da concepção de modelos arquitetônicos das escolas estaduais paulistas. Vê-se, pois, que é inquestionável a presença e atuação da iniciativa privada na rede física escolar paulista.

Entendo que a proposta do governo estadual não constitui desatinada violação às regras estabelecidas. Trata-se, tão somente, de uma nova estratégia de terceirização da parte não estritamente educacional das escolas públicas, por meio de uma amarração por longo período do que já é praticado pontualmente. Tudo muito bem especificado e permanentemente avaliado pode redundar em ganhos de escala e de eficiência.

Outro fato, relacionado ao tema acima, foi o anúncio pela Prefeitura da Capital de São Paulo de implantar gestão privada em 50 escolas da rede municipal. Tal se daria sob inspiração e nos moldes da parceria efetivada com o Liceu Coração de Jesus que se encontrava em situação difícil na região da Cracolândia. Anúncio decorrente de compromisso de campanha eleitoral. Mas com incertezas e indefinições. Ao citar o Liceu, poderiam ser mencionadas as inúmeras creches privadas em convênio com a Prefeitura, dada, justamente, a demanda e a incapacidade de atendimento pleno pela rede pública. Ora, a distinção apresentada acima entre as funções e atores estritamente educacionais e os não estritamente educacionais também se aplicaria à rede pública municipal. Ou seja, não se abre mão da gestão e demais funções estritamente educacionais. Assim, uma hipótese seria continuar, e talvez fortalecer, o envolvimento da iniciativa privada nas funções não estritamente educacionais. Outra estratégia seria, a exemplo do Liceu, promover parceria com outras escolas privadas de ensino fundamental, sob critérios de política pública, de demanda e de insuficiência da rede pública municipal. Transferir a gestão de escola pública para o setor privado além de inconveniente como política educacional deve enfrentar sérios obstáculos legais. Em resumo, não achei adequado e objetivo o anúncio da Prefeitura de São Paulo.
Aos eventuais leitores, peço benevolência por dados imprecisos obtidos na fonte livre Google.
_________________________
Nacim Walter Chieco é Membro da Academia Paulista de Educação e ex-Presidente dos Conselhos Estadual e Municipal de Educação de São Paulo